sábado, 2 de março de 2013

Três

Não era um problema em si. Talvez apenas um pequeno incômodo.
A terceira tinha sonhos e planejava incansavelmente o futuro longínquo em que ela se imaginava.
Não por ser terceira que era melhor ou pior.
Por ser terceira era mediana.
A terceira não se parecia com ninguém, mas ao mesmo tempo era todos.
A terceira por muitas vezes se mantinha calada quando o assunto não era dela, e mesmo quando o assunto era dela ela preferia o silêncio.
A terceira era medrosa, era sonhadora, era artista, mas não era excepcional. Porque a terceira não era líder, nem extrovertida e simpática.
A terceira guardava todos os seus receios pra chorar sozinha mais tarde. Guardava seus segredos e suas angústias, suas paixões e seus desgostos em palavras. E tinha cadernos e cadernos abarrotados de confissões.
A terceira queria perguntar à todos que ela amava qual era o grau de sua importância na vida daquelas pessoas. E ela queria sim, receber uma resposta afirmativa. Queria receber abraços e elogios por ser quem era. Mas quem ela era, senão a terceira?
À seus pais, queria questioná-los: por que não fizeram mais? Porque o que tinham feito, na visão da terceira, não era o suficiente. Ela queria deixar de se importar com o que lhe diziam, porque sempre ouvira que por ser a terceira é que tinha mais opções, porque a primeira e a segunda já tinham testado tantas outras. À isso, a terceira interpretava como restos. Para a terceira sobravam restos de tentativas, experiências gastas, palavras usadas. Sentia-se eternamente no banco da reserva. Para o caso da primeira e segunda falharem, lá estaria a terceira.
De tantas histórias, ouviu uma em que foi um acidente. Sentiu então que não era necessária. Ouvia desculpas e desculpas pra toda aquela situação. Mas não lhe bastavam.
De tantas verdades, sempre lhe disseram que era egoísta. E quanto mais tentava acreditar nisso, mais lhe diziam o contrário. Quais eram as verdadeiras verdades?
De tantas lágrimas, ouviu dizer que era humana por chorar tanto. Mas no desespero também foi tachada de covarde. Ela faria de tudo para não saber tanto.
A terceira pagaria, talvez com sua vida, o preço da ignorância. Mas contraditoriamente, ela não queria estar alheia à nada. Ela queria saber tudo. Ela era perfeccionista. Assim era a terceira. Por isso, quando lhe diziam qualquer palavra que fosse, ela costumava perder-se em horas e horas de reflexão. Queria entender tudo, inclusive o ininteligível.
Tempos em tempos, ela se apaixonava. E admitia que isso era um grande desperdício. E contraditoriamente, talvez por ser humana, sentia-se bem. Mas sentia-se mal porque esperava muito pela reciprocidade dos sentimentos. E então de vez em vez ela piorava, porque a estima que guardava para todos era muito maior do que a estima que guardava à si mesma. Frente à isso, a terceira quis muito desistir de tudo.
Mas não nego que a terceira era batalhadora. Ela se esforçava ao seu limite, se colocando em situações que ela própria odiava. Queria prestígio. Queria reconhecimento. Então, desse jeito, a terceira foi excluindo algumas de suas convicções pitorescas. Por que tanto de seus pais se era só um enorme desperdício?
A terceira nunca quis ser primeira, ou segunda, ou quarta ou o que quer que fosse. Ela sempre quis ser ela mesma. E por medo de afirmar isso, acabava aceitando as toscas apresentações de quem ela era: terceira filha.
Ela imaginava-se como uma pessoa única, assim como todos. Porque ela via em cada pessoa ao seu redor um único indivíduo, com sonhos, medos e incertezas. Mas todos eram únicos.
Ela não era santa por pensar e ser assim. Ela errava muitas e muitas vezes. E ela julgava muitas e muitas vezes. E por tantos erros e tantos julgamentos, ela pagava com a mesma moeda. E por isso chorava também, muitas e muitas vezes.
Seria uma notável fraqueza amar tanto para julgar tanto e chorar tanto?
A terceira era tola demais e imatura demais.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Nós

Ela deixou cair sua agenda no chão. Percebeu que as folhas que despencaram eram notas um tanto quanto antigas.
Eram desenhos, cartas, tolas mensagens, números, contas, anotações. Eram muitas incógnitas e símbolos que representavam muita coisa e ao mesmo tempo nada.
Ela deixou-se distrair por entre as palavras. Por que guardou todas elas?
Sua mente divagava entre lembranças e expectativas. Não queria precisar de tantos motivos. Queria simplesmente pegar todas as folhas, amassá-las e atirá-las dentro do primeiro cesto de lixo que encontrasse. Queria simplesmente deixá-las caídas no chão, para que se algum curioso percebesse, as tomasse para si e fizesse daquelas singelas confissões sua própria história, seu próprio motivo.
Seus olhos fixaram-se no menor dos papéis, que continha a menor das palavras e sobretudo, a que mais lhe incomodava.
Nó.
Não se lembrava quem ou quando fizera essa nota. Não sabia nem o motivo para tal. Não havia história que recriasse o momento em sua imaginação. Mas era um incômodo.
Sentia como se o próprio nó estivesse à sua frente, não em palavra, mas em forma, objeto. Sentia que aquele nó não estava só à sua frente, mas à sua volta e dentro e si. Entalado na garganta. Prendendo seus pulsos. Segurando seu corpo para que não saísse do lugar.
Ela sorriu diante de tantas bobagens de sua imaginação. Sorriu cética de si mesma. Como era tremendamente tola...
Levantou-se levando consigo apenas aquela nota. Nó.
Sem querer, deixou agenda e desenhos, cartas, tolas mensagens, números e contas para trás.
Foi embora com o nó nas mãos.

Ao lado do nó ainda era possível enxergar uma marca de s apagada.
Ela perdeu o nós mas levou o nó consigo e sozinha.