quinta-feira, 10 de julho de 2014

Tales

O menino vendeu todos seus pertences, inclusive os de maior valor sentimental. Decidiu-se não apegar àquele tipo de coisa.
Sem mais, fechou a porta de casa. Deixou para trás uma família que o amava, ainda que os conflitos fossem diários. Esqueceu-se dos amigos, dos relacionamentos fracos e torpes que construíram seu caráter, do fino sentimento de amizade e afeto. Não precisava de nada.
Tinha a mais completa convicção de que o caminho para encontrar-se era abster-se de tudo àquilo a que estava acostumado. Aventurar-se por mares nunca antes navegados.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Lobo ou estepe?

Decorei muito bem as ruas pelas quais caminhava por receio de me perder. Era verdade. Às vezes me tomava umas distrações abissais que me faziam perambular horas por caminhos conhecidos mas há pouco apagados de minha memória. Talvez fosse um problema clínico mesmo. Não queria acreditar nisso. Nunca quis.
Renascia em mim a ideia de uma co-existência. Foram as conclusões após ler quase por inteiro O Lobo da Estepe. E se de noite eu já não era eu? E se de dia, me roubava a autonomia a existência de um autômato programado para executar?
Executava tarefas diversas durante o dia: trabalhar, pagar contas, comer, respirar. De noite já era outro: caminhava sem rumo, ria à toa e chorava, sentia fome mas nenhuma vontade de comer.
Sentia-me lobo à noite, estepe ao dia.
Era como se pisasse em todo um passado que há pouco acontecia. Correr pela estepe do que fui.
Era como ser pisoteado pelos lobos diurnos, os engravatados, os oportunistas, os vigaristas.
Um ciclo do qual eu fazia parte em todos os pontos.
Eu perdia em mim a ausência da falta. E a falta da ausência preenchia minha angústia. Era minha própria angústia.
Olhar o céu e não ter lua a que uivar. Sair ao sol e sentir-me prensado entre o ar e o mundo. Eu era o chão, a base de toda uma sociedade. Mas eu era também aquele que destruía a natureza ainda existente.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

uma caixa de presente de aniversário

Por achar demasiado tolo eu transformei alguns vícios em paixões. Cada vez que me lembro disso eu me torturo. As frases não saem no lugar. Porque não há dilemas, ou são todas elas que me perseguem até agora?

Olha que eu me explico, o tempo passa rápido demais
quem somos nós e onde estamos? pra onde ir e por que vamos?

medo, medo, não ter porque continuar

terça-feira, 14 de maio de 2013

14 do Cinco

Na garrafa que era de vidro, no corpo que era de carne e osso, na mente que era de cinzas.
Ela morreu mais uma vez. Tinha desejado tanto não desejar. Tinha feito mil rezas para um deus que às vezes jurava não precisar, mas a quem sempre recorria.
Ela queria o nunca e queria agora.
Ela morreu mais uma vez. Mais uma vez ela desejou muito morrer.

sábado, 2 de março de 2013

Três

Não era um problema em si. Talvez apenas um pequeno incômodo.
A terceira tinha sonhos e planejava incansavelmente o futuro longínquo em que ela se imaginava.
Não por ser terceira que era melhor ou pior.
Por ser terceira era mediana.
A terceira não se parecia com ninguém, mas ao mesmo tempo era todos.
A terceira por muitas vezes se mantinha calada quando o assunto não era dela, e mesmo quando o assunto era dela ela preferia o silêncio.
A terceira era medrosa, era sonhadora, era artista, mas não era excepcional. Porque a terceira não era líder, nem extrovertida e simpática.
A terceira guardava todos os seus receios pra chorar sozinha mais tarde. Guardava seus segredos e suas angústias, suas paixões e seus desgostos em palavras. E tinha cadernos e cadernos abarrotados de confissões.
A terceira queria perguntar à todos que ela amava qual era o grau de sua importância na vida daquelas pessoas. E ela queria sim, receber uma resposta afirmativa. Queria receber abraços e elogios por ser quem era. Mas quem ela era, senão a terceira?
À seus pais, queria questioná-los: por que não fizeram mais? Porque o que tinham feito, na visão da terceira, não era o suficiente. Ela queria deixar de se importar com o que lhe diziam, porque sempre ouvira que por ser a terceira é que tinha mais opções, porque a primeira e a segunda já tinham testado tantas outras. À isso, a terceira interpretava como restos. Para a terceira sobravam restos de tentativas, experiências gastas, palavras usadas. Sentia-se eternamente no banco da reserva. Para o caso da primeira e segunda falharem, lá estaria a terceira.
De tantas histórias, ouviu uma em que foi um acidente. Sentiu então que não era necessária. Ouvia desculpas e desculpas pra toda aquela situação. Mas não lhe bastavam.
De tantas verdades, sempre lhe disseram que era egoísta. E quanto mais tentava acreditar nisso, mais lhe diziam o contrário. Quais eram as verdadeiras verdades?
De tantas lágrimas, ouviu dizer que era humana por chorar tanto. Mas no desespero também foi tachada de covarde. Ela faria de tudo para não saber tanto.
A terceira pagaria, talvez com sua vida, o preço da ignorância. Mas contraditoriamente, ela não queria estar alheia à nada. Ela queria saber tudo. Ela era perfeccionista. Assim era a terceira. Por isso, quando lhe diziam qualquer palavra que fosse, ela costumava perder-se em horas e horas de reflexão. Queria entender tudo, inclusive o ininteligível.
Tempos em tempos, ela se apaixonava. E admitia que isso era um grande desperdício. E contraditoriamente, talvez por ser humana, sentia-se bem. Mas sentia-se mal porque esperava muito pela reciprocidade dos sentimentos. E então de vez em vez ela piorava, porque a estima que guardava para todos era muito maior do que a estima que guardava à si mesma. Frente à isso, a terceira quis muito desistir de tudo.
Mas não nego que a terceira era batalhadora. Ela se esforçava ao seu limite, se colocando em situações que ela própria odiava. Queria prestígio. Queria reconhecimento. Então, desse jeito, a terceira foi excluindo algumas de suas convicções pitorescas. Por que tanto de seus pais se era só um enorme desperdício?
A terceira nunca quis ser primeira, ou segunda, ou quarta ou o que quer que fosse. Ela sempre quis ser ela mesma. E por medo de afirmar isso, acabava aceitando as toscas apresentações de quem ela era: terceira filha.
Ela imaginava-se como uma pessoa única, assim como todos. Porque ela via em cada pessoa ao seu redor um único indivíduo, com sonhos, medos e incertezas. Mas todos eram únicos.
Ela não era santa por pensar e ser assim. Ela errava muitas e muitas vezes. E ela julgava muitas e muitas vezes. E por tantos erros e tantos julgamentos, ela pagava com a mesma moeda. E por isso chorava também, muitas e muitas vezes.
Seria uma notável fraqueza amar tanto para julgar tanto e chorar tanto?
A terceira era tola demais e imatura demais.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Nós

Ela deixou cair sua agenda no chão. Percebeu que as folhas que despencaram eram notas um tanto quanto antigas.
Eram desenhos, cartas, tolas mensagens, números, contas, anotações. Eram muitas incógnitas e símbolos que representavam muita coisa e ao mesmo tempo nada.
Ela deixou-se distrair por entre as palavras. Por que guardou todas elas?
Sua mente divagava entre lembranças e expectativas. Não queria precisar de tantos motivos. Queria simplesmente pegar todas as folhas, amassá-las e atirá-las dentro do primeiro cesto de lixo que encontrasse. Queria simplesmente deixá-las caídas no chão, para que se algum curioso percebesse, as tomasse para si e fizesse daquelas singelas confissões sua própria história, seu próprio motivo.
Seus olhos fixaram-se no menor dos papéis, que continha a menor das palavras e sobretudo, a que mais lhe incomodava.
Nó.
Não se lembrava quem ou quando fizera essa nota. Não sabia nem o motivo para tal. Não havia história que recriasse o momento em sua imaginação. Mas era um incômodo.
Sentia como se o próprio nó estivesse à sua frente, não em palavra, mas em forma, objeto. Sentia que aquele nó não estava só à sua frente, mas à sua volta e dentro e si. Entalado na garganta. Prendendo seus pulsos. Segurando seu corpo para que não saísse do lugar.
Ela sorriu diante de tantas bobagens de sua imaginação. Sorriu cética de si mesma. Como era tremendamente tola...
Levantou-se levando consigo apenas aquela nota. Nó.
Sem querer, deixou agenda e desenhos, cartas, tolas mensagens, números e contas para trás.
Foi embora com o nó nas mãos.

Ao lado do nó ainda era possível enxergar uma marca de s apagada.
Ela perdeu o nós mas levou o nó consigo e sozinha.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

De frente pro crime

Escrito em 19/11/07 (acho). Baseado na música de João Bosco, De Frente pro Crime.


Só foi dar cinco minutos após os tiros e uma aglomeração de pessoas já se formava em volta do corpo. Não que isso fosse novidade no morro da Farofa Fresca, a causa seria a falta do que fazer num dia como esse, ou como todos os outros. Era apenas mais um corpo caído no chão.
O jornal escondia o rosto do pobre homem, e provocava comentários involuntários sobre um jogo de futebol que ocorrera dois dias atrás. E apesar de tudo, nem na morte o infeliz encontrava descanso. Hora ou outra alguém se ocupava a trocar informações de sua “não mais vida”.
As perguntas eram freqüentes: “O que será que aconteceu?”. E as respostas tão óbvias que ninguém mais tinha gosto de respondê-las. Traição, suicídio, vingança... Qualquer coisa era fofoca. Qualquer coisa satisfazia o tédio e a curiosidade.
O sol quente do meio-dia parecia atrair os comerciantes, e como se não bastasse, logo vinha José com sua barraca de bugigangas, seguido por Antônia, a famosa pasteleira do Morro.
Com o calor, lá estava o barzinho apinhado de gente: velhos, bêbados, mulheres, crianças.... E até um vereador que aproveitou a ocasião para pedir votos e propagar seus “grandes feitos”, que só se resumiam em palavras difíceis e confusas para aquela gente. Bobagens como sempre.
E os gritos... A confusão... O sol quente... O cheiro de podridão... Mais gritos... Mais confusão... O calor insuportável... O cheiro de pastel misturado à carne podre... Sufoco!
- É... ouvi dizer que esse daí já não tinha jeito mesmo! Levou o que mereceu. – comentou uma freguesa de Dona Antônia.
- Pobre homem. – argumentou a pasteleira piedosa.
- Eu tenho pena é da mulher dele. Está rindo de felicidade, mas ainda não sabe que deve muitos trocados por aí. – ironizou o dono do bar que aproveitou um tempinho para sair lá fora.
- Trocados? Sei... Ele tava ligado com o tráfico. Senão ainda taria vivinho pra te pagar o que deve. – concluiu um velho que fumava seu charuto na maior paz do mundo.
- OLHA O PASTEEEL!! TEM DE CARNE, TEM DE QUEIJO!! SÓ POR 1 REAL!! – Dona Antônia aproveitou o breve silêncio para voltar ao trabalho.
- Pastel? Não tem paçoca não, moça? – um garoto vinha chegando com os olhos mais famintos que os bolsos.
- Paçoca não tenho não. Mas pode levar esse pastelzinho aqui, menino. – ofereceu, sentida pela miséria dos seus (era como costumava chamar as pessoas que ali moravam).
- São coisas desse tipo que acaba transformando esses moleques em um bando de vagabundos... – criticou o dono do bar para a mulata – Quero só ver quando já não mais sobrar corpos para serem mutilados. E então chega a nossa vez. Guerra que não tem mais fim. – resmungou voltando ao trabalho.
Abafando um suspiro, dona Antônia atendeu mais dois clientes, enquanto os curiosos continuavam a rodar o corpo.
O sol se pôs, as nuvens e a escuridão logo se misturaram àquele ar comum de início de noite. Ao invés de barracas, era a moçada que preenchia o vazio das ruas. O som alto de uma música qualquer tomava o lugar dos costumeiros berros de dona Antônia vendendo seus pastéis.
As horas passaram, a festança também. E logo, às quatro horas da manhã, todos tomavam seu caminho de volta para a casa. Alguns já cambaleando de sono, outros ainda pensando no que fariam no dia seguinte. Cada qual para o seu rumo. Cada um para o seu canto.
E o corpo continuava jogado no chão. Mas o silêncio foi compensador. E como não houvesse mais nada com que me ocupar, fui descansar, fechando minha janela de frente pro crime.